A polêmica tributação das horas extras pela contribuição sobre folha de salários

O presente trabalho tem como escopo analisar a natureza jurídica das horas extras e as suas decorrentes repercussões no âmbito tributário, especialmente em relação à Contribuição Previdenciária sobre Folha de Salários.

BRUNO BARCHI MUNIZ

[su_expand more_text=”Sobre o autor” less_text=”Esconder” height=”0″ hide_less=”no” text_color=”#333333″ link_color=”#0088FF” link_style=”default” link_align=”right” more_icon=”icon: plus” less_icon=”icon: minus” class=””]Pós-Graduado em Direito Tributário e Processual Tributário pela Escola Paulista de Direito (EPD). Graduado pela Faculdade de Direito da Universidade Católica de Santos. Membro da Associação dos Advogados de São Paulo. Advogado em São Paulo. [email protected][/su_expand]

[su_tooltip style=”yellow” position=”top” shadow=”no” rounded=”no” size=”default” title=”” content=”Artigo originalmente publicado na Revista Tributária e de Finanças Públicas, ano 23, vol 125 – nov.-dez. / 2015” behavior=”click” close=”no” class=””][su_button] Data de publicação: novembro/2015 [/su_button][/su_tooltip]

Índice

1. Introdução
2. A REGRA MATRIZ DE INCIDÊNCIA TRIBUTÁRIA DA CONTRIBUIÇÃO SOBRE FOLHA DE SALÁRIOS
3. A MATERIALIDADE DA CONTRIBUIÇÃO SOBRE FOLHA DE SALÁRIOS
4. REFERIBILIDADE E GANHOS HABITUAIS
5. VERBAS REMUNERATÓRIAS E INDENIZATÓRIAS
6. A POLÊMICA TRIBUTAÇÃO DAS HORAS EXTRAS PELA CONTRIBUIÇÃO SOBRE FOLHA DE SALÁRIOS
7. A VISÃO DA JURISPRUDÊNCIA SOBRE O TEMA
8. CONSIDERAÇÕES FINAIS
9. Bibliografia

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1. Introdução

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A discussão sobre os limites do campo de incidência das contribuições destinadas ao financiamento da Seguridade Social tende ao infinito, e a Contribuição sobre Folha de Salários (ou Contribuição Patronal ou Contribuição Previdenciária ou, ainda, “INSS”) talvez seja uma das que despertem maior animosidade.

Isso porque existem conceitos jurídicos indefinidos subjacentes a essa discussão, enquanto existe uma materialidade prevista constitucionalmente e não “manuseável” perfeitamente pelo Executivo, através de suas Medidas Provisórias, nem pelo Legislativo, no campo da elaboração das Leis Ordinárias e Complementares.

Podemos dizer dessa forma, pois já é tradicional no Direito Tributário pátrio encontrarmos situações que são o que não são, ou não são o que são, de modo que subsiste um entendimento do que vem a ser certo instituto “para fins tributários”, como se isso pudesse, de fato, existir, em completo descompasso com a natureza real dos próprios institutos.

A título de exemplo, é famosíssima a longa discussão sobre as diferenças conceituais entre “faturamento” e “receita bruta”, conceitos que o legislador, na melhor das hipóteses, confundiu, resultando em instituição de tributação inconstitucional durante razoável período.

No caso da Contribuição sobre Folha de Salários, como já dito, um dos problemas reside na rigidez do texto constitucional e no fato de a própria Constituição Federal estabelecer a materialidade do tributo, relegando para a doutrina e jurisprudência definir precisamente o alcance de tais conceitos, o que, convenhamos, costuma acarretar em discussão mais séria do que quando, em Direito Tributário, o legislador busca elaborar a chamada “interpretação autêntica”.

Nesse estudo, confrontaremos precisamente a questão da materialidade da Contribuição Patronal e a análise de verbas que estariam ou não sujeitas à sua incidência, focando mais especificamente na questão das horas extras, por se tratarem, talvez, de uma das parcelas mais polêmicas.

Este estudo pode ser relevante para empresas sujeitas ao recolhimento de Contribuição Previdenciária por meio de incidência sobre folha de salários e, especialmente, para pessoas jurídicas de Direito Público, em especial Municípios, sujeitos naturalmente a tributação nessa forma.

Além disso, tendo em vista que a esmagadora maioria dos Municípios deve à União, o eventual questionamento de parcelas objeto de cobrança por parte do ente federal ou mesmo a aparência de existência de crédito do Município, decorrente de pagamento indevido, pode resultar em diminuição ou anulação de retenções no repasse de verbas do Fundo de Participação dos Municípios, incrementando substancialmente as finanças municipais.

A tese, portanto, em aspecto prático, pode ter desdobramentos processuais e materiais relevantes tanto para entidades de Direito Privado quanto de Direito Público.

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2. A REGRA MATRIZ DE INCIDÊNCIA TRIBUTÁRIA DA CONTRIBUIÇÃO SOBRE FOLHA DE SALÁRIOS

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Analisemos os aspectos que compõem a Regra Matriz de Incidência Tributária da Contribuição sobre Folha de Salários:

  • Aspecto material: a folha de salários e demais rendimentos do trabalho pagos ou creditados, a qualquer título, à pessoa física que lhe preste serviço, mesmo sem vínculo empregatício;
  • Aspecto temporal: quando se dá a realização do trabalho pela pessoa física;
  • Aspecto espacial: território nacional;
  • Aspecto quantitativo: base de cálculo: montante pago pelos rendimentos do trabalho, a qualquer título; alíquota: 20%;
  • Aspecto subjetivo: polo ativo: União Federal; polo passivo: tomador do serviço de trabalho individual da pessoa física.

Complementemos a Regra Matriz destacando mais um aspecto conveniente para a disciplina das contribuições, qual seja, areferibilidade, que é a pertinência necessária entre o sujeito passivo e o próprio fato tributável, com o consequente retorno em benefícios.

Lembre-se que as contribuições têm destinação específica e é essa destinação que as caracteriza, efetivamente, como contribuição, sem a qual ela perde sua legitimidade. A esse respeito, vejamos voto do Min. Carlos Velloso, que se consubstancia em verdadeiro magistério:

“(…) a declaração de inconstitucionalidade do dispositivo que faz a destinação do imposto não exoneraria o contribuinte de pagar o tributo. Declarada a inconstitucionalidade da destinação do imposto, seria ele recolhido aos cofres do Erário. É dizer, o que cairia seria, apenas, a destinação, e não o tributo.

Uma ressalva é preciso ser feita. É que caso há, no sistema tributário brasileiro, em que a destinação do tributo diz com a legitimidade deste e, por isso, não ocorrendo a destinação constitucional do mesmo, surge para o contribuinte o direito de não pagá-lo. Refiro-me às contribuições parafiscais – sociais, de intervenção no domínio econômico e de interesse de categorias profissionais ou econômicas, CF, art. 149 – e aos empréstimos compulsórios (CF, art. 148).”

Dessa forma, importante observar no caso da Contribuição sobre Folha de Salários, a referibilidade existe em relação ao empregador, tomador do trabalho da pessoa física, em razão do Princípio da Solidariedade e, mais objetivamente, pela relação de Seguro Social do qual se beneficiam os seus empregados e ele próprio, pois deixa ou reduz custos quando a Previdência Social passa a pagar o auxílio doença, por exemplo.

Acontece que não é toda a verba genericamente paga ao empregado que se torna base de cálculo desta Contribuição, sendo a sua materialidade muito mais restrita.

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3. A MATERIALIDADE DA CONTRIBUIÇÃO SOBRE FOLHA DE SALÁRIOS

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Em verdade, a Contribuição sobre Folha de Salários, enquanto possui como destinação de arrecadação a execução de atividades relacionadas à Seguridade Social, acaba por ser, paradoxalmente, uma das grandes vilãs das relações de emprego, uma vez que extremamente onerosa para quem contrata e deve pagá-la.

Aliás, foi com esse pretexto que a partir de 2011 surgiu a onda das “desonerações”, redirecionando a incidência do tributo da folha de salários para percentual sobre o faturamento das empresas, na chamada Contribuição Previdenciária sobre a Receita Bruta (CPRB).

O escopo, de acordo com o que foi amplamente divulgado, era justamente reduzir os custos da relação de emprego. Na prática, a desoneração foi atingindo progressivamente e principalmente apenas os setores que já possuíam um número vultoso de terceirizados, desvirtuando completamente aquilo que era pelo menos o seu pretexto divulgado.

Recentemente, novas crises econômicas e perspectivas legislativas tendem a extinguir ou minorar a relevância da CPRB, voltando ao centro das atenções a Contribuição sobre Folha de Salários.

Como mencionado, ela é extremamente onerosa aos empregadores, incidindo à alíquota de 20% sobre a folha de salários. Mas o que nos importa aqui não é a alíquota (parcela do aspecto quantitativo do tributo), mas o seu aspecto material.

A esse respeito, vejamos a dicção constitucional sobre o tema:

“Art. 195. A seguridade social será financiada por toda a sociedade, de forma direta e indireta, nos termos da lei, mediante recursos provenientes dos orçamentos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, e das seguintes contribuições sociais:

I – do empregador, da empresa e da entidade a ela equiparada na forma da lei, incidentes sobre:

a) a folha de salários e demais rendimentos do trabalho pagos ou creditados, a qualquer título, à pessoa física que lhe preste serviço, mesmo sem vínculo empregatício;

b) a receita ou o faturamento;

c) o lucro;

(…)”

Percebe-se, aqui, no caput, a consagração do Princípio da Universalidade do Custeio, ao mesmo tempo em que já se determina expressamente a materialidade da tributação, deixando um campo residual para que a União crie novas contribuições, mas desde que observado o art. 154, I, da CF/1988, ou seja, desde que sejam elas instituídas por lei complementar e “desde que sejam não cumulativos e não tenham fato gerador ou base de cálculo próprios dos discriminados nesta Constituição.”

Vejamos os esclarecimentos de Paulo Ayres Barreto:

“O espectro de atuação da União, no plano social, é amplo. Para financiar a atividade estatal neste segmento, outorgou-se competência para a União criar contribuições sociais. Tais contribuições podem ser subdivididas em (i) contribuições destinadas ao financiamento da seguridade social e (ii) outras contribuições sociais.

Relativamente às destinadas à seguridade social, há referência expressa no Texto Constitucional – art. 195, I a IV – às materialidades que especificamente devem ser colhidas pelo legislador ordinário federal para criar contribuições que objetivem financiar a atividade estatal. Além disso, há a possibilidade de se instituir outras fontes destinadas a garantir a manutenção ou expansão da seguridade social, desde que observado o disposto no art. 154, I, da CF/1988 (lei complementar, não cumulatividade, fato gerador e base de cálculo distintos de outros impostos discriminados na Constituição). Noutro dizer, há contribuições cuja materialidade já vem prefinida na outorga de competência.”3

Enfim, a materialidade da Contribuição sobre Folha de Salários é, precisamente, “a folha de salários e demais rendimentos do trabalho pagos ou creditados, a qualquer título, à pessoa física que lhe preste serviço, mesmo sem vínculo empregatício”.

Percebe-se que a Constituição não faz diferenciação entre os tipos de pagamento, razão pela qual abrange rendimentos pagos ou creditados “a qualquer título”.

Por outro lado, ela vincula expressamente a incidência sobre a folha de salários e rendimentos “do trabalho”, falando, imediatamente antes, em “salário”.

A esse respeito, vejamos o que a doutrina trabalhista tem a nos dizer sobre o que vem a ser salário:

“(…). Empregado é um trabalhador assalariado, portanto, alguém que, pelo serviço que presta, recebe uma retribuição.”4

Ives Gandra da Silva Martins Filho ainda nos dá a distinção entre salário e remuneração:

“a) Salário – é a contraprestação devida ao empregado, pela prestação de serviços, em decorrência do contrato de trabalho (pago diretamente pelo empregador). Tendo caráter alimentar, goza de privilégios legais (impenhorabilidade, intangibilidade, preferência na cobrança frente a créditos de outra natureza).

b) Remuneração – para o empregado, é a soma do salário com outras vantagens percebidas, em decorrência do contrato (ex.: salário base + gorjetas); para as demais espécies de trabalhador, é a contraprestação do serviço.”5

Assim, a própria Constituição Federal determina que, dentre as diversas parcelas pagas a empregados ou prestadores de serviços pessoa física, apenas as pagas em decorrência do trabalho. Mas, esclareçamos, com o auxílio da doutrina, que não é exatamente qualquer verba que decorra genericamente do trabalho que está apta a compor a base de incidência da contribuição, mas aquelas devidas diretamente do trabalho.

Perceba-se, através da citação de Martins Filho, que existe diferença técnica entre salário e remuneração, sendo que ainda este último conceito não abarca toda sorte de valores recebidos pelo trabalhador, mas também aqueles em decorrência direta e consequência natural do trabalho.

Desse modo, para fins de incidência da Contribuição sobre Folha de Salários, vale dizer: a incidência é sobre a remuneração, entendida como a contraprestação paga diretamente pelo trabalho desenvolvido, compreendendo-se todos os valores diretamente pagos pelo trabalho, não necessariamente pela relação de emprego.

Por isso entende-se, de forma pacífica, que não incide Contribuição sobre Folha de Salários sobre o terço constitucional de férias e aviso-prévio indenizado, por exemplo, justamente por essas parcelas, embora devidas por lei, não serem devidas como uma contraprestação direta pelo trabalho.

Nesse sentido, a questão das horas extras ganha maior polêmica, pois o seu pagamento é ou não contraprestação pelo trabalho?

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4. REFERIBILIDADE E GANHOS HABITUAIS

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O deslinde da questão gira em torno da pergunta realizada no último parágrafo do item anterior, assim sintetizada: afinal, horas extras compõem ou não contraprestação pelo trabalho?

Mas, antes de chegarmos a esse ponto, importa notarmos dois fatos relevante para respondermos essa questão:

1) a questão já comentada a respeito da referibilidade exige que o pagamento seja feito por pessoa vinculada ao fato gerador e que essa mesma pessoa venha a ter como consequência um retorno direto em benefícios; ou seja, devem os valores serem utilizados como referencial de pagamento e, consequentemente, como referência para incorporação ao valor da aposentadoria;

2) a Constituição Federal determina, no art. 201, § 11, que: “Os ganhos habituais do empregado, a qualquer título, serão incorporados ao salário para efeito de contribuição previdenciária e consequente repercussão em benefícios, nos casos e na forma da lei”.

Deixa-se evidenciado, aqui, a obrigatoriedade da observação da referibilidade, ao mesmo tempo em que os ganhos habituais são incorporados, por força de determinação constitucional, ao salário (ou à remuneração, em aspecto mais técnico), para efeitos de pagamento de contribuição previdenciária (tanto do empregado ou equiparado quanto do empregador ou equiparado).

A importância do tema é justamente pelo fato de que as verbas habituais, ao incorporarem-se ao “salário”, acabam se situando, em verdade, em uma categoria de remuneração do trabalho.

Há, de fato, uma lógica por trás disso: a regra maior, por mais que às vezes absurdamente não pareça, deve ser a remuneração do trabalho em prol do trabalhador, com outras parcelas sendo exceção.

Acontece que dadas as particularidades do verdadeiro Estado Social Brasileiro, existem inúmeras parcelas que, por lei, se agregam às consequências da relação de trabalho e, ainda que sejam habituais, não possuem a aptidão de se incorporarem à remuneração.

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5. VERBAS REMUNERATÓRIAS E INDENIZATÓRIAS

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A doutrina e a jurisprudência comumente dividem as verbas trabalhistas, ao menos para efeitos tributários, em duas categorias: as remuneratórias e as indenizatórias.

Antes de chegarmos ao ponto mais relevante da questão, vejamos uma interessante e clara definição de Leandro Paulsen e Andrei Pitten Velloso:

“A referência, na norma de competência, a ‘rendimentos do trabalho’ afasta a possibilidade de o legislador fazer incidir a contribuição sobre verbas indenizatórias. Assim, os valores pagos a título de auxílio-creche, de auxílio transporte e as ajudas de custo em geral, desde que compensem despesa real, não podem integrar a base de cálculo da contribuição previdenciária.”

As parcelas remuneratórias são mais claras de se compreender, sendo, como já dito, aquelas diretamente ligadas à realização do trabalho, como o próprio salário e as gorjetas, utilizando o exemplo de Martins Filho, também supracitado.

Já as indenizatórias, a despeito do relevante ensinamento exposto acima, possuem sentido impróprio, pois transbordam em muito o que habitualmente se depreende desse conceito.

Indenização, por definição, é uma recomposição patrimonial derivada de um dano pretérito causado por outrem.

Em verdade, é um conceito jurídico de direito civil, com impactos relevantes para o direito tributário. Assim sendo, vejamos a explicação de Maria Helena Diniz:

“O autor de ato ilícito (CC, arts. 186 e 187) terá responsabilidade subjetiva pelo prejuízo que, culposamente, causou (…).

Consagrada está a responsabilidade civil objetiva que impõe o ressarcimento de prejuízo, independentemente de culpa, nos casos previstos legalmente, ou quando a atividade do lesante importar, por sua natureza, potencial risco para os direitos de outrem (…).”

Percebe-se, pois, que a indenização, em sentido clássico, exige necessariamente a ocorrência de um dano a ser reparado.

Por outro lado, no nosso tema, habituou-se chamar irregularmente de “verbas indenizatórias” quaisquer verbas que não as remuneratórias, apenas para diferenciar umas das outras.

Isso é importantíssimo de se distinguir, pois não se vislumbra ato ilícito algum ou reparo de dano no pagamento do já mencionado terço constitucional de férias, por exemplo, tanto é que, salvo algumas decisões esparsas e que consideramos equivocadas, se incluem na base de cálculo do Imposto de Renda, que incide sobre todos os rendimentos, excluídas as efetivas indenizações e outras verbas que a lei discrimine.

Feitas todas essas observações preparatórias, partimos para a análise da questão específica das horas extras: são elas verbas remuneratórias ou “indenizatórias”, compreendidas, aqui, como não remuneratórias?

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6. A POLÊMICA TRIBUTAÇÃO DAS HORAS EXTRAS PELA CONTRIBUIÇÃO SOBRE FOLHA DE SALÁRIOS

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Para responder a essa pergunta, devemos conhecer a natureza jurídica das horas extras e, necessariamente, precisaremos avaliar a jornada de trabalho normal.

A regulamentação jurídica da jornada de trabalho passa por diversos momentos históricos, principalmente após a Revolução Industrial. Ao longo do Século XIX, legislações europeias e norte americana variavam em reconhecer um limite máximo entre 08 e 12 horas de trabalho diário, o que já parecia um avanço diante de regimes de trabalho que podiam atingir 14 ou 15 horas diárias.

A Encíclica Rerum Novarum, de 1891 fez expressa referência de que “não deve o trabalho prolongar-se por mais tempo do que as forças o permitem”.

A consolidação do turno de trabalho de 08 (oito) horas diárias como regra geral em todo mundo surgiu com o Tratado de Versailles, sendo das primeiras estipulações da então recém criada Organização Internacional do Trabalho.

Enfim, cristalizou-se a definição que pode ser sintetizada por uma canção inglesa de protesto: “Eight hours to work, eight hours to play, eight hours to sleep, eight shillings a day”.

A Constituição Federal do Brasil prevê, no art. 7.º, XIII, que a jornada de trabalho normal (excluindo, portanto, jornadas especiais) constitui em limite de 08 (oito) horas diárias e 44 (quarenta e quatro) horas semanais, podendo ainda às partes fixar limite inferior ao normal (art. 58 da CLT).

A mesma Constituição, no art. 7.º, XVI, admite serviço extraordinário, mas a remuneração deve ser superior à normal em pelo menos 50% (cinquenta por cento), sendo que o limite é de 02 (duas) horas extras diárias, conforme art. 59 da CLT.

Já de início, sem maiores esforços, percebemos que as horas extras são compostas de duas parcelas: 1) o valor da hora normal; e 2) o valor do acréscimo, em mínimo de 50%.

Somente com isso já é possível se observar pelo menos a natureza jurídica da segunda parcela, de índole nitidamente indenizatória, no sentido puro do conceito.

Ora, qual seria o motivo de se estipular a cobrança de um adicional de 50% sobre o valor da hora normal de trabalho senão para desestimular quem a paga e compensar/indenizar aquele que a recebe?

Na verdade, esse é um fundamento bastante evidente também na primeira parcela das horas extras. Percebe-se que, mesmo que a tenhamos decomposto aqui para melhor explicação, elas são indissociáveis, devendo ser pagas pelo empregador ou por aquele a ele equiparado, sem que seja uma liberalidade.

O fundamento é justamente recompensar o empregado pelo serviço prestado, como não poderia deixar de ser e, mais ainda, compensá-lo pela sua perda no lazer e repouso, proporcionada justamente em prol do tomador de seu serviço.

A própria Constituição Federal, ao tratar do salário mínimo (art. 7.º, IV), o afirma como devendo ele ser em quantia capaz de satisfazer as necessidades vitais e básicas do trabalhador e sua família.

De forma analógica, o salário e rendimentos habituais (tais como as gorjetas, para não variar do exemplo já utilizado), devem servir para as mesmas finalidades, sendo que as horas extras contam-se para benefício do tomador do trabalho, em detrimento do próprio trabalhador, que fica impedido de realizar outros projetos pela superação da carga de trabalho originalmente combinada e legalmente prevista.

Por isso, é de se compreender que todas as parcelas componentes das horas extras possuem natureza indenizatória de forma pura, como forma de composição patrimonial, e não como verdadeiro rendimento, impactando positivamente como acréscimo patrimonial ou, no caso, como verdadeira remuneração.

Muitos anos atrás, em conversa sobre este mesmo assunto com um profissional da Procuradoria da Fazenda Nacional, ele dizia que se não considerasse as horas extras como uma remuneração, um rendimento do trabalho, significaria que qualquer trabalho, inclusive dentro das 08 horas diárias poderia ser tido como indenização, pois, ao longo desse período, privava o trabalhador de seu ócio.

Deve-se discordar desse posicionamento também por motivos jurídicos. A Constituição Federal, com toda justiça, não estipula o trabalho como um fardo ou um dever de todos, mas como um direito social (art. 6.º). Por isso, deve, sim, ser reconhecido como um fato gerador de riquezas tributável.

A questão das horas extras, por outro lado, decorre justamente da superação das horas normais esperáveis e pactuadas, gerando, sim, prejuízo ao trabalhador, razão pela qual não devem ser encaradas como remuneração, mas com índole indenizatória, como já dissemos.

Aliás, conveniente observar que ganha cada vez maior notoriedade no direito do trabalho a questão do dano existencial, justamente derivado dos prejuízos de vida que o trabalhador teve em decorrência de tomadas de horas desarrazoadas para a realização de trabalhos, superando a licitude que se espera da própria relação de trabalho.

Oras, se a consequência desse fato é o reconhecimento de um prejuízo indenizável, como não reconhecê-lo para todos os âmbitos, do trabalhista ao tributário? O direito é uno, de qualquer modo.

Mesmo assim subsistem os que entendem pela natureza remuneratória das horas extras, negando que se trata de uma supressão do tempo de lazer ou descanso do trabalhador, mas uma oportunidade em que ele está usando desse tempo para aumentar sua renda.

Entretanto, a jurisprudência já pacificou que o valor pago a título de férias indenizadas é de natureza indenizatória, não remuneratória.

Impossível não se observar a total congruência e similaridade de tais situações, inclusive com fundamentos idênticos. Como vir a ser diferentes as conclusões? Qual a diferença entre “vender as férias” e “vender as horas de descanso e lazer”?

Note-se que a “venda das férias”, por força do disposto no art. 143 da CLT, é opção e direito subjetivo do empregado. Por outro lado, as horas extras constituem necessidade do serviço, sendo de rigor reconhecer que estão fora do âmbito de decisão do empregado, demonstrando, de uma vez por todas, seu aspecto compensatório.

De fato, é até inusitado se pensar que o empregador “seguraria” o empregado por mais horas como se quisesse lhe pagar mais. Há, em verdade, um pagamento a mais em compensação ao que privou ao trabalhador.

Perceba-se que o fato de as horas extras possuírem característica indenizatória na forma conceitual mais própria significa que não poderia ser aplicável a hipótese do art. 201, § 11, da CF/1988.

Não se ignora o conteúdo da Súmula 115 do TST,8 mas a tributação deve ignorar indenizações, por ausência de riqueza tributável, razão pela qual as horas extras, mesmo se habituais, não poderiam ser incorporadas ao salário nem mesmo para a designação dos respectivos benefícios em aposentadoria, eis que o seu caráter, como mencionado, é claramente indenizatório, pela recomposição de um dano, e não apenas “não remuneratório”.

Ainda que assim não fosse, tendo em vista que as horas extras são laboradas em decorrência de necessidades excepcionais do serviço, não há meio de se observar, de fato, regularidade em seu pagamento com caráter a interferir na referibilidade, com consequências tributárias e previdenciárias, evitando a hipótese do art. 201, § 11, da Lei Maior.

Não sendo incorporáveis ao salário do contribuinte para fins de aposentadoria e respectivos benefícios, também inviável compor a base de cálculo das contribuições incidentes sobre a remuneração.

De outra senda, entender que realizar mais horas extras constitui uma vantagem para o trabalhador em detrimento de seu descanso seria forma de desprestigiar o valor do trabalho humano, pedra angular da ordem econômica, consoante art. 170 da CF/1988. Lancemos mão do sempre valoroso magistério de Ives Gandra da Silva Martins:

“(…) o sentido do art. 170 da CF, que tem os seus poderes maiores assentados na livre iniciativa e na valorização do trabalho humano, estaria fortemente maculado, se tal valorização do trabalho implicasse em ‘menos valia’ do legítimo direito do trabalhador de gozar seu descanso e seu lazer, a não ser que compensado para trabalhar, durante o período em que deveria gozar de seu ‘direito de não trabalhar’.”

Deve existir um reconhecimento claro e ele existe na Constituição, de que o ser humano não veio ao mundo para trabalhar, mas que o trabalho é apenas parte de sua vida e um verdadeiro direito.

O Direito Tributário, a esse respeito, deve respeitar os institutos e o reconhecimento da dignidade humana e, acima de tudo, a valorização do trabalho humano contida na Carta Magna.

Eis claramente um desdobramento do Princípio da Capacidade Contributiva, tanto em sentido objetivo, já que o valor pago a título de horas extras não expressa, de fato, riqueza, mas mera composição patrimonial; quanto subjetivo, pois o sujeito que tem seu patrimônio recomposto não possui os atributos ou riqueza necessária para se figurar no polo passivo da relação tributária.

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7. A VISÃO DA JURISPRUDÊNCIA SOBRE O TEMA

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A jurisprudência sobre o tema permanece indefinida. Há, tanto no Supremo Tribunal Federal quanto no STJ, julgamentos que reconhecem a não incidência da Contribuição sobre Folha de Salários sobre horas extras quanto decisões que definiram pela incidência, sendo que a maioria dos julgados têm se posicionado dessa última forma.

É de se ressaltar, por outro lado, que está em curso o julgamento com repercussão geral do RE 593.068/SC, que deverá definir a questão em pelo menos 30 mil processos sobrestados que discutem a matéria e dar orientação a todos os demais casos.

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8. Considerações Finais

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A despeito da polêmica que poderá ser resolvida pelo julgamento do mencionado processo em repercussão geral, nos parece bastante claro que as horas extras possuem natureza indenizatória em sentido clássico, de recomposição ou compensação patrimonial.

Dessa forma, não devem se sujeitar ao pagamento de contribuições (e nem mesmo Imposto de Renda), já que não constituem remuneração, ou seja, não são pagas como contraprestação direta do trabalho, mas possuem inclusive um acréscimo que dá o tom de indenização ao trabalhador por ter sido diminuído o seu tempo de lazer e repouso.

É justamente esse o fundamento da não incidência para as férias indenizadas e não existe motivo jurídico para diferenciação em relação às horas extras.

Na pior das hipóteses, há de se reconhecer a existência de duas parcelas, ainda que indissociáveis, que compõem as horas extras, sendo o valor da hora normal e o adicional de no mínimo 50%. Esta última parcela, como dito, dá o aspecto compensatório e ajuda a identificar a natureza jurídica da verba. Mas ainda assim, se se optar por entender que existe no instituto uma remuneração, a segunda parcela sobreviverá como imune a esse entendimento, por ser indenizatória.

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9. Bibliografia

” anchor=”item-9″ open=yes]

Barreto,Paulo Ayres. Contribuições: regime jurídico, destinação e controle. São Paulo: Noeses, 2011.

Carvalho,Paulo de Barros. Curso de direito tributário. 23. ed., São Paulo: Saraiva, 2011.

Diniz,Maria Helena. Código Civil Anotado. 12. ed., rev. e atual., São Paulo: Saraiva, 2006.

Martins,Ives Gandra da Silva. A natureza não salarial do adicional de horas extras: caráter indenizatório e não sujeição à incidência do imposto sobre a renda e das contribuições sociais. Revista Magister de Direito Trabalhista e Previdenciário, n. 19 jul.-ago. 2007.

Martins Filho,Ives Gandra da Silva. Manual de direito e processo do trabalho. 18. ed., rev. e atual., São Paulo: Saraiva, 2009.

Nascimento, Amauri Mascaro. Iniciação ao direito do trabalho. 33. ed., São Paulo: LTr, 2007.

Paulsen,Leandro; Velloso, Andrei Pitten. Contribuições: teoria geral, contribuições em espécie. Porto Alegre: Revista do Advogado Editora, 2010.

 

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